segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Crítica de “A Aurora da Minha Vida”

Antecipação da Sociedade Futura na Escola do Presente
por Antônio Hohlfeldt

"O Brasil tem, no século XIX, apenas um dramaturgo: Martins Pena, criador de nossa comédia de costumes. No século XX, podemos referir Nelson Rodrigues, o pioneiro; Jorge Andrade e Plínio Marcos. O único outro nome da lista do século passado é Naum Alves de Souza. Os demais, alguns muito bons e importantes, como Gianfrancesco Guarnieri ou Augusto Boal, ou Luis Vianna Filho, o Vianinha - são autores de peças teatrais, sem nenhum demérito para eles. O que quero designar com dramaturgo? Aquele autor de peça teatral que, mais do que saber escrever uma peça e dominar a carpintaria teatral (diálogo, rubricas que se reflitam na encenação, etc.), é capaz de ter uma visão de mundo e, por consequência, uma unidade em sua obra.

É de Naum Alves de Souza uma das peças que integraram a programação da primeira semana do Porto Verão Alegre deste ano, A Aurora da Minha Vida. O título refere-se a conhecido poema que fala dos tempos da infância e da escola, todos conhecem: “Ó que saudades eu tenho, da aurora da minha vida, de minha infância perdida, dos tempos que não voltam mais” etc. O poema sugere nostalgia do passado. A peça de Naum Alves de Souza, pelo contrário, evidencia que as condições presentes de uma sociedade sempre têm a ver exatamente com a infância de uma nação e com o que uma de suas mais importantes instituições (um “aparelho ideológico de Estado”, dizia Louis Althusser) - a escola - faz com suas crianças-alunos.

O tema tem tradição na arte. Lembremos o romance O Ateneu, do brasileiro Raul Pompéia ou o filme If..., do britânico Lindsay Anderson, paródia do poema do colonialista Rudyard Kipling. A escola é o lugar das “belas mentiras”, para se referir ao título de um conhecido livro crítico de Maria de Lourdes Nosella e Umberto Eco, traduzido no Brasil. E a peça de Naum Alves de Souza é uma recriação ao mesmo tempo terrível, fiel e poética de tudo isso.

A peça estreou em 1981, quando recebeu os prêmios APCA e Molière, Mambembe e Governador do Estado de São Paulo. Irene Brietzke e seu Teatro Vivo responderam pela primeira montagem de Porto Alegre. Leandro Ribeiro assina a atual produção, que cumpriu temporada de três dias no Teatro de Câmara e que retornará à ribalta da cidade, infelizmente apenas em novembro vindouro. Mas o leitor anote e deixe agendado. Se o elenco é muito jovem, tem fraquezas e sobretudo não resolve todos os problemas de entonação afinada, o que emociona é que o conjunto dos oito intérpretes (quatro atores e quatro atrizes) pedido pelo dramaturgo constitui uma equipe profundamente homogênea, um coletivo com muita força. Numa peça de grande duração, com pequenos cortes apenas em relação ao texto original, isso é um imenso mérito do diretor, sem tirar as qualidades do grupo. Ribeiro conseguiu a façanha de dar personalidade coletiva - o que é fundamental, conforme registra Naum Alves de Souza na edição da peça que consultei (Editores Associados, 1982) - e seu diretor musical, Gil Jones, de quem, infelizmente, o programa do Porto Verão Alegre não registra o nome, foi inteligente e sensível para enfrentar a dificuldade de afinação do elenco, propondo as letras dos poemas de Naum - salvo aqueles muito conhecidos - sobre composições musicais conhecidas, que ele parodia, e orientando o grupo para cantar baixinho, com naturalidade, com o quê o problema da desafinação diminui e na maioria dos casos é até esquecida.

O elenco é um grupo, já disse, qualquer destaque seria injusto. Mas para que o leitor identifique, aqui vai ele: Douglas Carvalho (faz o bobo), Gabriel Aquino vive o menino que vem a morrer, Igor Ramos é o delator, Ketti Cardoso interpreta a filha do gerente de banco, Marelize Obregon é a professora da primeira cena e uma das gêmeas, Mari Freitas é a Gorda, Márjori Moreira é a segunda gêmea e William Molina é o menino órfão. A montagem de Ribeiro é profundamente fiel ao texto original, sensível, bem pontuada e emocionante. A gente esquece o tempo passar. O espetáculo ganha ritmo, a plateia se envolve, cada personagem ganha vida. Crianças - futuros cidadãos - professores e alunos - o universo que é o microcosmo de uma sociedade, ali, inteiro, inesquecível. Que bom matar saudades dessa montagem. Parabéns ao grupo pelo esforço sério e dedicado e sobretudo pela bela e oportuna lembrança de se remontar este espetáculo. Mais do que apropriado!"

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